ASSOCIAÇÃO DOS PROCURADORES DO ESTADO DE SÃO PAULO


 


Crônicas da Procuradoria


Crônicas da PPI:gente do teatro

O famoso diretor teatral José Celso Martinez Corrêa e sua equipe (Associação Usyna Uzona) pretendiam ocupar regularmente as ruínas do que fora o célebre Teatro Oficina. Parece até que já ocupavam. Estava em curso ação expropriatória do imóvel, movida pelo Estado, e foi autorizada a permissão de uso à Associação.

Com o termo, fui para a Secretaria da Cultura. Conversava com a secretária, a atriz Bete Mendes, na mesa de reunião. Falava-me ela dos entreveros havidos com o diretor Zé Celso, quando se abriu a porta. A cena: formando um cortejo, o diretor e equipe entravam na grande sala do gabinete, cantando e dançando, até chegarem à mesa na qual se deitou uma bela afro descendente. De soslaio, vi o olhar contrariado de Bete. Chegaram o afável deputado Suplicy e a imprensa. Todos abancados. Na cabeceira da mesa, a secretária. Nos dois lados, eu e Suplicy. Zé Celso, ao lado do deputado. Logo, novo entrevero entre Bete e o diretor. Eu apenas olhava. Mas, aguardava chance para falar. Afinal, representava o Estado. A certa altura, Zé Celso lançou mais uma vez seu argumento: “Temos direito de ocupar aquele espaço teatral porque o Oficina tem uma história de luta, foi um baluarte na resistência à ditadura” . Era a deixa para mim: “Mas, não foi só o Oficina. O Teatro de Arena também tem uma história de luta e resistência”. Bete, em cima: “Isso mesmo. Muito bem lembrado!”.

Zé Celso estacou. Silêncio. Levantou-se e olimpicamente cresceu sobre mim. Teatralmente, arregalou os olhos, fixou-me e estendeu o braço, apontando: “Eu conheço você!”, trovejou. Eu, simpaticamente: “Claro que nos conhecemos, Zé. Estudamos juntos na Faculdade”. Minhas duas falas botaram água na fervura, Zé Celso sossegou, foi cordial, desfez-se a tensão, correu a imprensa para mim. Num clima descontraído, assinamos o termo de permissão. “Jornal da Tarde” do dia seguinte: “Estado cede o Teatro Oficina para José Celso Martinez Corrêa. Procurador que assinou o documento foi seu colega de Faculdade e grande admirador do velho Teatro Oficina, tendo assistido a grandes e históricas representações, como ‘O Rei da Vela’ e ‘Os Pequenos Burgueses’.

Tempos depois, revogou-se a permissão para que outra, específica de teatros, fosse concedida pela pasta da Cultura, com verba destinada à reconstrução do prédio. Assinatura do termo de revogação no teatro, ou melhor, nas obras de reconstrução, ainda verdes. Presentes intelectuais, artistas, parece que o então secretário da Cultura Fernando Morais (não tenho certeza), Suplicy, o grande professor Aziz Ab’Saber, e uma equipe de TV. Tudo em paz. Com a nova permissão, obras de reconstrução em andamento (projeto de Lina Bo Bardi), ergueu-se nova parede de fundo, na divisa com terreno de uma das empresas (Baú da Felicidade?) do Grupo Silvio Santos. Nessa parede abriu-se uma janela. Não deu outra: ação de nunciação de obra nova da empresa contra o Estado e contra a Associação Uzina Uzona. Disparidade gritante: uma empresa com práticas comerciais absolutamente arcaicas contra uma associação teatral absolutamente vanguardista, goste-se ou não dela. O fato é que na velha parede do antigo prédio do Teatro tinha havido uma janela. Daí o inconformismo de Zé Celso. Estrilando, foi ao secretário da Justiça e à PPI, onde o recebi: não abria mão da janela. A cena: no sofá, Zé Celso e seu advogado. Numa cadeira, frente a eles, eu.

Conversa cordial, o diretor repetia sempre seu novo bordão: “Quando a polícia invadia o teatro pela frente, os artistas fugiam pelos fundos, através da antiga janela. Ela ficou na história da resistência da arte contra o obscurantismo e os esbirros do Governo!”. Não queria saber de argumentos legais. A história prevalecia. Eu simpatizava muito com a história da antiga janela, era verdadeira, romântica e atraente, mas, dura lex. No impasse, uma última tentativa: “Ângela, chama o dr. Tubelis”. O procurador Vicente Paulo Tubelis, grande advogado público, inflexível, durão, gostando de fingir e de dizer que era louco, defendia o Estado na ação. Entrou e ficou de pé, diante do sofá. Pedi-lhe uma solução. Nesse momento, Zé Celso repetiu o bordão da “histórica janela da resistência”. Tubelis, honrando a fama, descompôs: “Qual história, qual nada, o autor da ação tem razão, a lei impede abertura de janelas em parede na divisa. Essa de janela histórica é baboseira!”. Era o velho Tubelis de sempre. Zé Celso, atônito, ouviu, abriu a boca, soergueu-se no sofá, olhos esbugalhados. E, braço esticado, dedo quase no nariz do Tubelis, bradou “É o demônio! É o demônio!”. Tubelis não deixou barato e berrou de volta “Sou o demônio, sim!”. Pano rápido. Segurando o riso, conduzi Tubelis para outra sala. Hoje, o diretor trava nova guerra contra o poderoso Grupo Sílvio Santos. Como escreveu Guilherme Wisnik na “Folha de S. Paulo”, é uma guerra de Davi contra Golias no Bexiga. Bem lembrado. José Celso, o Davi, não joga pedras com funda, mas esperneia e bota a boca no trombone como ninguém. Força, grande Zé Celso! 
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José Milton Garcia é procurador do Estado aposentado. Ingressou na carreira em 1963 e foi classificado na PPI, onde desempenhou a chefia entre 1983 e 2002.

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