ASSOCIAÇÃO DOS PROCURADORES DO ESTADO DE SÃO PAULO



 

Artigo

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A Representação Política e a Globalização


A instituição da mera representação política, mesmo com a
alternância assegurada, está longe de contribuir para a
solução justa da governabilidade política das comunidades

Alaôr Caffé Alves

 

Por que é necessária a representação política? Quem representa, representa alguém ou um grupo de pessoas em relação a algum assunto ou interesse. Uma representação política é pertinente à direção dos negócios públicos de interesse de todos, usando, se necessário, a força para a obtenção de resultados, segundo os valores e aspirações sociais da comunidade representada. O exercício do poder, em geral, pressupõe sempre uma inequação, uma desigualdade social básica em virtude da qual uma parte se sobrepõe à outra, seja por razões de conhecimento (razões ideológicas), seja por razões econômicas (razões materiais), seja, ainda, por razões de poder exercer a força (razões políticas).

O poder político implica o poder de exercer, em última instância, a força, a violência. Seu artifício, entretanto, é a manipulação ideológica para obter a inclinação das vontades que representa. Neste caso, há uma violência simbólica, onde cada um tem que aceder às decisões do poder legítimo, porque este foi escolhido para representar a comunidade. Se maior a identidade dos valores, menor será a violência simbólica. Por isso, supõe-se que a democracia, onde existem eleições de representantes e onde todos os valores são discutidos, seja a melhor forma de representar a sociedade em sua direção política. Entretanto, ela também não prescinde do exercício da violência, quando necessária. Por isso, se justifica ao Estado a instituição de forças armadas ou policiais, detentoras da possibilidade de reagirem legitimamente com atos de violência.

Com esta força, contudo, vem a pergunta: quem verifica se o poder está efetivamente sendo exercido segundo as aspirações de todos? Quem controla os controladores? Aí está a questão chave da representatividade. Se a sociedade não é um todo uníssono, visto haver interesses divergentes e até antagônicos, com diferentes capacidades de se fazerem presentes, como é possível a representação ser legítima? Na Idade Média, não havia necessidade de representação política, pois o poder econômico vinha integrado com o poder político. O senhor feudal agia no âmbito econômico, comandando a produção da vida material, bem como no âmbito político, exercendo a força sob todos os ângulos possíveis (jurídico, militar etc.).

É preciso inaugurar uma nova democracia, a democracia participativa.
É por meio dela que poderemos neutralizar o poder avassalador do mercado

Nos tempos modernos, com o advento do capitalismo, o poder político se separou do econômico, devendo ser exercido com autonomia em relação a este último. Aparece o poder político centralizado e personalizado na figura do Estado, encarnando os ideais da comunidade pública, e separado da sociedade civil, de caráter mercantil, onde permanece a fornalha das atividades econômicas sob valores egoístas. Diante da fragmentação da sociedade civil, como exercer em nome de todos o poder político? A sociedade é fragmentada em inúmeros interesses, muitos deles poderosos economicamente e que, por isso, podem se fazer representar mais e melhor do que outros na máquina político-burocrática do Estado. Neste sentido, com profundas diferenças na distribuição e na participação das riquezas produzidas, como pode haver autêntica representação política na condução dos negócios públicos? Parece, na verdade, que a separação entre o político e o econômico não é tão definida como os nossos ideólogos nos fazem crer. É, na verdade, uma separação de fachada, uma separação ideologicamente preparada pelas forças hegemônicas da sociedade, para induzir ao engodo da neutralidade da ordem política, entendida como orientação democrática e igual para todos.

Hoje, com o fenômeno da globalização, a questão se torna mais visível ainda. Cada vez mais observamos a utilização da máquina estatal para o atendimento dos propósitos privados das grandes corporações mundiais, unificadas e fusionadas, sem nenhum escrúpulo dos governantes, que passam a representar muito mais a mediação entre o povo e essas corporações, para o melhor proveito destas, do que para a consecução dos reais interesses das grandes populações "representadas". Não há resistência alguma diante dos imensos interesses econômicos e financeiros exercidos em escala mundial. Não há um Estado universal para constranger, em nome de todas as comunidades nacionais, os grandes interesses privados emergentes de uma economia universal. Diante disso, no âmbito dos Estados nacionais, qual o valor do voto universal, do voto distrital, do voto misto, da representação democrática, dos mecanismos dos partidos, das instituições políticas tradicionais de rua etc.?

A meu ver, a instituição da mera representação política, mesmo com a alternância assegurada, está longe de contribuir para a solução justa da governabilidade política das comunidades. Para isto, é preciso uma diuturna participação do povo nos negócios comuns da comunidade. É preciso inaugurar uma nova democracia, a democracia participativa. É por meio dela que poderemos neutralizar o poder avassalador do mercado. Para sua eficácia, entretanto, será necessário estabelecer formas não tradicionais de representação, mediante redes organizadas de representação e participação, onde as instituições culturais, produtivas, religiosas, profissionais, acadêmicas, de vizinhança, de lazer etc. tenham vinculações diretas ou indiretas com o poder político, alijando a influência absoluta dos partidos políticos. Os partidos não podem ser os únicos agentes do relacionamento entre o público e a cidadania. A representação deve ser apenas um meio para garantir a real e efetiva participação das instituições sociais e dos homens concretos no governo das comunidades. Somente assim é possível assegurar, acreditamos, a força e a universalidade necessária para contrabalançar o imenso poder econômico privado surgido com a globalização.

Alaôr Caffé Alves é professor associado da Faculdade
de Direito da USP e procurador do Estado aposentado.

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