Como era comum no panteão grego, a deusa Atena
encerrava caráter dúplice: sabedoria, predisposição pacífica,
preponderância da razão e do equilíbrio sobre a impulsividade; mas, por
outro lado, mantinha-se eternamente armada para a guerra justa, quando
inevitável. A julgar por uma réplica romana do século II de nossa era, a
estátua da divindade, esculpida por Fídias e reverenciada no Partenon,
reproduzia essa ambivalência complementar: semblante sereno, mas
determinado, fronte não completamente erguida, mas sempre portando
capacete, lança, couraça, escudo.
Ainda na mitologia grega, Prometeu
talvez tenha sido o herói que mais se prestou à inspiração filosófica,
literária e política: insubmisso à onipotência dos deuses, esculpiu um
homem com barro e roubou uma fagulha do fogo escondido no Olimpo para dar
vida à criatura. Zangado, Zeus mandou a belíssima Pandora para seduzi-lo,
levando de presente uma caixa que, quando aberta, espalharia todos os males
sobre o mundo. Mas, como Prometeu resistisse aos encantos da enviada, Zeus o
acorrentou a um rochedo onde uma águia devorava perpetuamente seu fígado,
que perpetuamente se reconstituía. Rebelde e disposto a tudo afrontar,
Prometeu encarna a metáfora da liberdade humana, capaz de opor resistência
à injustiça, ao poder, até ao destino.
Racionalidade, inteligência,
temperança, amor à justiça – mas vigilância permanente (Atena);
rebelião contra poderes opressores, busca corajosa da dignidade e da
liberdade, mito fundador do processo civilizatório humano (Prometeu): a
deusa e o herói enlaçam-se na fecunda imaginação da humanidade em
rebeldia contra a injustiça. Rebeldia que, como noutro mito helênico (o da
ave Fênix), renascerá sempre, para desespero dos poderosos e
privilegiados. Até que, passo após passo, a dignidade humana seja
estabelecida, o que, além da edificação da igualdade, liberdade,
respeito, demanda também a conquista das condições concretas para o
exercício desses pressupostos.
Pois a lei apenas impressa em folha
de papel pode ser letra morta ou, mesmo, letra que mata. Lembremo-nos da
denúncia ressonante que Anatole France colocou na boca de um de seus
personagens: "O direito, com seu igualitarismo majestoso, proíbe
igualmente a pobre e ricos de furtarem pão e dormirem ao relento".
Por isso, a dignidade, para ganhar existência completa, não pode
restringir-se tão-somente a uma condição "interior". Esta, até
o escravo podia ter. Mas, se queremos recusar verdadeiramente a armadilha do
cinismo, temos de exigir que, além desse "status" moral, a
dignidade venha a ser, ou volte a ser, uma construção de existência
objetiva, aferível inclusive por comparações.
No nosso caso, nós, procuradores e
procuradoras, certamente trazemos dentro do peito a dignidade intrínseca,
moral. Mas não abrimos mão de ampliá-la a todas as dimensões de nossa
vida profissional – inclusive, à dimensão remuneratória.
Que, em 2005, guiemo-nos pela
serenidade em armas da deusa e pela audácia rebelde do herói, metáforas
inspiradoras para prosseguirmos no embate justo.
José Damião de Lima Trindade
Presidente da Apesp