O pranto
do menino
A solenidade noturna de 1/10/2007,
realizada no Centro Sociocultural de nossa Associação
para assinalar os sessenta anos de assistência
judiciária gratuita em nosso Estado e a passagem desse
relevante serviço público para o âmbito da Defensoria
Pública já em plena atividade, revestiu-se de grande
significação histórica e ensejou momentos de emoção, com
indisfarçáveis afagos nostálgicos num silêncio íntimo de
saudade, tenho certeza, para toda a platéia.
Inquilino da casa dos 80, um dos
últimos moicanos de minha geração na carreira de que
tanto me orgulho, não esperava, depois de mais de vinte
anos de aposentadoria (março/1987), experimentar a
comoção de subir ao palco para, a exemplo de outros e
outras colegas homenageados (as) receber a placa com meu
nome gravado, acrescido de “subprocurador geral do
Estado – Área de Assistência Judiciária (23/12/86 a
23/03/87)” – numa generosa providência do dr. Marcos
Fábio de Oliveira Nusdeo, nosso eminente procurador
geral do Estado.
Ao ouvir os oradores da noite,
autoridades e colegas, todos enaltecendo e recordando a
“PAJ” e seu histórico endereço – av. Liberdade, n ° 32,
carregado de simbolismos, mergulhei, com todo o fôlego,
no imenso mar de minhas recordações de procurador que
ali chegou, vindo do gabinete da rua Boa Vista, onde
assinei o termo de posse no livro que Manoel Reis
me apresentou, sob o olhar aquilino do dr. Aécio
Mennucci, então procurador geral, e senti, ao ser
recebido pelo dr. Armando Guazzelli (procurador chefe) e
dr. Plínio Rezende (chefe da Penal), que um novo mundo
se descortinava à minha frente, como advogado dos pobres
e necessitados integrantes da grande legião dos que
sofrem em silêncio compassivo no universo atroz das
desigualdades sociais.
Cearense de nascimento, um tanto
palrador, que sou, o dr. Guazzeli, olhando para o dr.
Plínio, como que a buscar assentimento, determinou: que
tal, Plínio, colocar o dr. Raymundo no Júri?
E assim fui parar nos Tribunais de
Júri (I e II) no majestoso Palácio da Justiça, onde se
travavam memoráveis torneios de floretes verbais entre
promotores e defensores em nome dos sagrados direitos à
vida e à liberdade. Entre nossos (as) colegas
procuradores (as), todos e todas de uma dedicação
franciscana aos árduos e dificílimos trabalhos de defesa
dos acusados, o dr. Valdir Trancoso Peres, tribuno
incomparável, dono de uma dialética arrebatadora, me
levou a ler Erich Froom, tanto ele citava o mestre
alemão em suas monumentais defesas na tribuna do Júri.
Tempos históricos. O Esquadrão da
Morte, de triste memória, caminhava, finalmente, para o
banco dos réus. Estivemos lado a lado, na mesma mesa de
audiências, com o dr. Sérgio Fleury, tristemente famoso,
defendido por competente advogado. No mesmo processo,
coube-me a defesa de “Fininho I” – porque eram dois –,
integrante do Esquadrão e que se encontrava “em lugar
incerto e não sabido”. Assim, cabia à PAJ a defesa
deles, foragidos, em nome do mandamento constitucional
do contraditório e da ampla defesa...
Mas o que me conduziu a estes
delírios autobiográficos, provocados pela solenidade da
noite de primeiro de outubro, em que fomos (pela
primeira vez) homenageados na carreira, foi a lembrança
de uma tarde em que, antes do início da sessão do Júri,
já envergando minha beca, fui procurado pelo meirinho
que me trazia uma questão: o filho do réu que eu ia
defender, trazido pela mãe, queria ver e conversar com o
pai, que já se encontrava no banco, guardado por dois
soldados, junto à Tribuna da Defesa.
Fui à sala secreta e levei o problema
ao juiz, dr. José Fernandes Rama. Ele ordenou ao
meirinho: reviste o menino e leve-o ao encontro do pai.
Voltamos ao plenário e, então, vi a
cena que me marcou para sempre. O menino com sua melhor
roupinha, cabelos ainda úmidos do banho, atravessou o
corredor entre a multidão, conduzido pelo oficial de
justiça, subiu aos degraus do patamar onde ficávamos,
dirigiu-se ao pai e, num pranto convulsivo, cortante e
sonoro, atirou-se ao pescoço do réu, que também desatou
um choro rouco, cheio de soluços. Os soldados não
resistiram e também choraram. Não houve diálogo entre
pai e filho. Apenas pranto! O menino de seus dez anos
foi levado de volta à mãe, fiz-lhe um cafuné, arrasado
na minha emoção de procurador da PAJ a viver aquele
momento extremo da grande tragédia humana como um de
seus personagens. Nunca esqueci o pranto daquele menino,
que vive até hoje num dos nichos de minha memória
sentimental.
Raymundo Farias de Oliveira é
procurador do Estado aposentado. Foi subprocurador geral
da área da Assistência Judiciária entre 1986 e 1987. Na
Apesp exerceu a presidência entre dezembro de 1973 a
maio de 1974.
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