Como
costuma ocorrer nessa época do ano, a imprensa esteve
entulhada por balanços de todo o tipo. Um tédio. A falta de
assunto andou de mãos dadas com a falta de imaginação.
De uma maneira geral, os comentaristas
foram bastante condescendentes com o governo brasileiro,
particularmente com a política econômica. Em alguns setores
notou-se até um certo entusiasmo. No setor financeiro, por
exemplo. Daí vieram os balanços (num duplo sentido) mais
vibrantes. Aos olhos de alguns banqueiros e executivos
bancários, o presidente Lula passou em pouco tempo de
"analfabeto" a "estadista".
Sabemos que a economia estagnou, os
salários diminuíram e o desemprego aumentou. Não importa. O
essencial foi ter recuperado "a confiança do
mercado".
Poderia ter sido pior, repetiu-se com
freqüência. Sem dúvida. Por outro lado, como diria o
Conselheiro Acácio, também poderia ter sido melhor. É o que
sugere, por exemplo, a experiência do nosso mais importante
vizinho e aliado.
Refiro-me à Argentina. Eis aí um balanço
que ficou faltando e pode ser instrutivo para os brasileiros.
Afinal, o que se vê na Argentina de Kirchner é uma política
governamental mais ousada, menos presa a fórmulas e rotinas
convencionais, formando um contraste notável e, para muitos,
inesperado com o Brasil de Lula. Não é por acaso que uma
figura politicamente asquerosa como o escritor peruano Mario
Vargas Llosa, por exemplo, elogia Lula como
"pragmático" e despreza Kirchner como
"populista".
Vejamos, leitor, alguns dados da economia argentina. Sem exageros, prometo. Sei, por longa experiência,
que estatística arrasa qualquer conversa.
A
economia (do Brasil) estagnou, os salários diminuíram
e o desemprego aumentou.
Poderia ter sido pior, repetiu-se com freqüência. Mas,
diria o Conselheiro Acácio, também poderia ter sido
melhor.É o que sugere a experiência do nosso mais
importante vizinho e aliado
|
|
A mais importante diferença está no
desempenho do PIB. Em 2003, depois de anos seguidos de
profunda recessão, a Argentina cresceu nada menos que 7,3%, o
melhor resultado da América Latina. O investimento foi o
componente mais dinâmico da demanda interna. O desemprego
urbano, embora ainda muito grave, cedeu de forma importante,
caindo de uma média de 20% em 2002 para menos de 16% no ano
passado.
Essa forte recuperação não teria sido
possível se a economia da Argentina tivesse sido submetida a
uma política macroeconômica draconiana como a que aplicaram
no Brasil em 2003. Ao longo do ano, as taxas de juro
argentinas foram consideravelmente menores do que as
brasileiras. No final de 2003, a taxa de juro nominal de curto
prazo estava em 4,9% na Argentina contra 16,4% no Brasil.
Considerando a inflação acumulada no ano (preços ao
consumidor), a taxa de juro argentina correspondia a apenas
1,3% em termos reais.
A política fiscal também foi mais
flexível do que no Brasil. Resistindo a pressões do FMI, o
governo argentino fixou e alcançou uma meta mais modesta de
superávit primário, de 2,5% do PIB. Nem por isso os mercados
financeiros se assustaram. A bolsa de valores, por exemplo,
registrou alta acentuada no ano, superior a 100% em moeda
local. Em determinado momento, a excessiva oferta de fundos
externos levou o governo argentino a restringir a entrada de
capitais de curto prazo, adotando uma medida que é anátema
para a ortodoxia supersticiosa dominante no Ministério da
Fazenda e no Banco Central do Brasil.
O curioso é que essa flexibilidade
monetária e fiscal não impediu excelentes resultados no
combate à inflação. A existência de grande capacidade
ociosa na economia permitiu conciliar rápido crescimento da
produção com queda acentuada da inflação. A taxa de
inflação dos preços ao consumidor recuou de 41% em 2002
para menos de 4% em 2003 – menos da metade da que se
registrou no Brasil.
O crescimento da economia também não
produziu desequilíbrios externos. As importações
aumentaram, mas o saldo comercial da Argentina alcançou US$
15,5 bilhões. O superávit em conta corrente (computados
juros devidos e não pagos) chegou a US$ 9 bilhões, o
equivalente a quase 8% do PIB. No nosso caso, o superávit em
conta corrente representou menos de 1% do PIB.
Em suma, por enquanto Kirchner está dando
uma goleada. Não se deve esquecer que a sua herança foi bem
mais maldita do que a de Lula. A dívida pública total,
grande parte dela em moratória desde o início de 2002,
representa o equivalente a 140% do PIB (79% no caso do
Brasil). A dívida externa bruta total do país equivale a
428% das exportações de bens e serviços (284% no caso
brasileiro). A renegociação da dívida externa pública da
Argentina está sendo extremamente difícil e conflituosa.
Dependendo do que acontecer, ela pode até mesmo
desestabilizar a recuperação econômica em curso.
A imprensa publicou recentemente
declarações de um certo Eduardo Gamarra, diretor do Centro
de América Latina e Caribe da Universidade Internacional da
Flórida. Segundo esse cidadão, em razão do impasse na
renegociação da dívida argentina e por questões de
política externa, "os Estados Unidos não estão
realmente felizes com Kirchner", considerado mais radical
e preocupante do que Lula. "Apesar de toda a retórica,
Lula tem se mantido na linha. Ele disse muitas coisas, mas
realmente não fez nada", observou Gamarra.
Estamos dispensando esse tipo de elogio.
|