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Artigo

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Argentina: o balanço que faltou
O que se vê na Argentina de Kirchner é uma política governamental 
mais ousada, menos presa a fórmulas e rotinas convencionais, formando
 um contraste notável e, para muitos, inesperado com o Brasil de Lula

por Paulo Nogueira Batista Jr.

Como costuma ocorrer nessa época do ano, a imprensa esteve entulhada por balanços de todo o tipo. Um tédio. A falta de assunto andou de mãos dadas com a falta de imaginação. 

De uma maneira geral, os comentaristas foram bastante condescendentes com o governo brasileiro, particularmente com a política econômica. Em alguns setores notou-se até um certo entusiasmo. No setor financeiro, por exemplo. Daí vieram os balanços (num duplo sentido) mais vibrantes. Aos olhos de alguns banqueiros e executivos bancários, o presidente Lula passou em pouco tempo de "analfabeto" a "estadista".

Sabemos que a economia estagnou, os salários diminuíram e o desemprego aumentou. Não importa. O essencial foi ter recuperado "a confiança do mercado".

Poderia ter sido pior, repetiu-se com freqüência. Sem dúvida. Por outro lado, como diria o Conselheiro Acácio, também poderia ter sido melhor. É o que sugere, por exemplo, a experiência do nosso mais importante vizinho e aliado.

Refiro-me à Argentina. Eis aí um balanço que ficou faltando e pode ser instrutivo para os brasileiros. Afinal, o que se vê na Argentina de Kirchner é uma política governamental mais ousada, menos presa a fórmulas e rotinas convencionais, formando um contraste notável e, para muitos, inesperado com o Brasil de Lula. Não é por acaso que uma figura politicamente asquerosa como o escritor peruano Mario Vargas Llosa, por exemplo, elogia Lula como "pragmático" e despreza Kirchner como "populista". 

Vejamos, leitor, alguns dados da economia argentina. Sem exageros, prometo. Sei, por longa experiência, que estatística arrasa qualquer conversa.  

A economia (do Brasil) estagnou, os salários diminuíram e o desemprego aumentou. Poderia ter sido pior, repetiu-se com freqüência. Mas, diria o Conselheiro Acácio, também poderia ter sido melhor.É o que sugere a experiência do nosso mais importante vizinho e aliado

 

A mais importante diferença está no desempenho do PIB. Em 2003, depois de anos seguidos de profunda recessão, a Argentina cresceu nada menos que 7,3%, o melhor resultado da América Latina. O investimento foi o componente mais dinâmico da demanda interna. O desemprego urbano, embora ainda muito grave, cedeu de forma importante, caindo de uma média de 20% em 2002 para menos de 16% no ano passado.

Essa forte recuperação não teria sido possível se a economia da Argentina tivesse sido submetida a uma política macroeconômica draconiana como a que aplicaram no Brasil em 2003. Ao longo do ano, as taxas de juro argentinas foram consideravelmente menores do que as brasileiras. No final de 2003, a taxa de juro nominal de curto prazo estava em 4,9% na Argentina contra 16,4% no Brasil. Considerando a inflação acumulada no ano (preços ao consumidor), a taxa de juro argentina correspondia a apenas 1,3% em termos reais.

A política fiscal também foi mais flexível do que no Brasil. Resistindo a pressões do FMI, o governo argentino fixou e alcançou uma meta mais modesta de superávit primário, de 2,5% do PIB. Nem por isso os mercados financeiros se assustaram. A bolsa de valores, por exemplo, registrou alta acentuada no ano, superior a 100% em moeda local. Em determinado momento, a excessiva oferta de fundos externos levou o governo argentino a restringir a entrada de capitais de curto prazo, adotando uma medida que é anátema para a ortodoxia supersticiosa dominante no Ministério da Fazenda e no Banco Central do Brasil.

O curioso é que essa flexibilidade monetária e fiscal não impediu excelentes resultados no combate à inflação. A existência de grande capacidade ociosa na economia permitiu conciliar rápido crescimento da produção com queda acentuada da inflação. A taxa de inflação dos preços ao consumidor recuou de 41% em 2002 para menos de 4% em 2003 – menos da metade da que se registrou no Brasil.

O crescimento da economia também não produziu desequilíbrios externos. As importações aumentaram, mas o saldo comercial da Argentina alcançou US$ 15,5 bilhões. O superávit em conta corrente (computados juros devidos e não pagos) chegou a US$ 9 bilhões, o equivalente a quase 8% do PIB. No nosso caso, o superávit em conta corrente representou menos de 1% do PIB.

Em suma, por enquanto Kirchner está dando uma goleada. Não se deve esquecer que a sua herança foi bem mais maldita do que a de Lula. A dívida pública total, grande parte dela em moratória desde o início de 2002, representa o equivalente a 140% do PIB (79% no caso do Brasil). A dívida externa bruta total do país equivale a 428% das exportações de bens e serviços (284% no caso brasileiro). A renegociação da dívida externa pública da Argentina está sendo extremamente difícil e conflituosa. Dependendo do que acontecer, ela pode até mesmo desestabilizar a recuperação econômica em curso.

A imprensa publicou recentemente declarações de um certo Eduardo Gamarra, diretor do Centro de América Latina e Caribe da Universidade Internacional da Flórida. Segundo esse cidadão, em razão do impasse na renegociação da dívida argentina e por questões de política externa, "os Estados Unidos não estão realmente felizes com Kirchner", considerado mais radical e preocupante do que Lula. "Apesar de toda a retórica, Lula tem se mantido na linha. Ele disse muitas coisas, mas realmente não fez nada", observou Gamarra.

Estamos dispensando esse tipo de elogio.

Paulo Nogueira Batista Jr., economista, pesquisador visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP e professor da FGV-EAESP, é autor do livro A Economia como Ela É... (Boitempo Editorial, 3ª edição, 2002). Artigo originalmente publicado em 13/1/2004 na coluna Direto ao Ponto, da Agência Carta Maior, publicada às terças-feiras pelo autor (www.agenciacartamaior.com.br)

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