ASSOCIAÇÃO DOS PROCURADORES DO ESTADO DE SÃO PAULO

  

 

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Com os olhos da feminilidade
 

Mães, esposas, estudantes, amigas, profissionais, esportistas... São muitos os papéis,
mas em todos as mulheres procuradoras reafirmam sua busca por justiça social
 


Desde 1910, o 8 de março marca em todo o mundo o Dia Internacional da Mulher. Este ano, no entanto, a data ganhou um diferencial: a Carta Mundial das Mulheres para a Humanidade, que partiu de São Paulo e segue até Uagadugu, capital de Burkina Faso, na África. A carta percorrerá países da América do Sul, Europa, Ásia, Oceania, Oriente Médio e África, e será entregue em 17 de outubro. Burkina Faso não foi escolhido por acaso: além de ter o terceiro mais baixo índice de desenvolvimento humano do planeta, o lugar é conhecido pela violência doméstica, matrimônios forçados e mutilações sexuais cometidas contra as mulheres.

A Carta Mundial das Mulheres para a Humanidade contém 31 afirmações do ponto de vista feminino para um mundo sem explorações, opressão, intolerância e exclusão, com respeito à integridade, diversidade e aos direitos e às liberdades de todos. Luta conhecida de perto pelos procuradores e procuradoras do Estado. Dos quais, aliás, elas são maioria. Dentre os 930 procuradores atuantes no Estado, aproximadamente 59% são mulheres, segundo dados estatísticos levantados pela Corregedoria.

Para retratar um pouco desse diversificado universo feminino, O Procurador entrevistou cinco mulheres da carreira. Cinco histórias, rotinas e paixões que deságuam todas no mesmo e turbulento movimento em busca de um mundo mais justo e igualitário para mulheres e homens.

Para ser igual tem de ser melhor"

Aos 53 anos, quase metade deles vividos na procuradoria, Raquel Camargo Pupo ainda se considera uma "dependente química" da profissão. E não é de hoje, atuando na Consultoria de uma Secretaria de Estado, mas desde sempre. Sua filha Isabel quase veio à luz num fórum, nos primeiros anos de advocacia. Aliás, sua memória de advogada anda colada à de mãe. O primeiro dia de Francisco, o segundo filho, na escolinha maternal foi também o primeiro dia de Raquel na PGE: 24 de fevereiro de 1981. 

Na PAJ, viu (e fez) nascer a assistência judiciária nos presídios, esteve na equipe pioneira no Carandiru. Após o divórcio, decidiu viver com os filhos, já adolescentes, no interior, longe da hostilidade e das dificuldades da metrópole.

Na subprocuradoria de Botucatu, respondia diretamente por quatro comarcas. Tinha banca, viajava dezenas de quilômetros quinzenalmente. E, justamente numa dessas cidades onde foi procurar paz, viveu a experiência de trabalhar sob ameaças – felizmente, nunca concretizadas – de uma família de devedores do Estado, supostamente traficantes.

Mas nem só de seu vício pelo trabalho vive Raquel. Sua característica de mulher lúcida e decidida foi apreendida na infância. Aos 15, já havia escolhido a carreira que daria seqüência à sua vida adulta e, uma vez na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, decidir pela Procuradoria foi um pulo.

Apesar do rigor com que vive mergulhada no trabalho, Raquel faz dele apenas mais uma de suas razões de viver. Cuidar do jardim e da casa, caminhar no parque, fazer a "comidinha", tocar e cantar músicas – sempre na companhia do marido, Humberto, com quem vive há três anos – também fazem parte dos seus prazeres. Assim como estudar sempre, tanto assuntos de sua área, que requerem atenção permanente, como se familiarizando com outros ramos do Direito, como ambiental e direitos humanos. Eclética, Raquel é também ligada a uma universidade livre no México. "Estudo astrologia, magias, estou aprendendo a costurar."

Para ela, ser mulher é, em determinados momentos, ter que ser mais gente que homem: "Quando um chefe grita, quando alguém a intimida no trânsito, quando o filho está com febre, quando se está sem empregada, quando vem uma cantada junto com um assunto profissional... Nesses momentos, é que entra um clichê, mas nem por isso menos válido. Mulher, pra ser igual, tem que ser melhor".

Por um mundo igual a um colo, de mulher

A Assessoria Técnica da Chefia de Gabinete da Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania proporciona muito trabalho e cada dia um ou vários novos problemas para resolver. Mas é assim que Maria Aparecida Costa gosta. Afinal, a militância em defesa da justiça e da cidadania foram combustível de sua escolha pela profissão.

É claro, a escolha pela PGE, no final da década de 80, também teve a ver com a sonhada estabilidade profissional. Rosa, primeira filha de Cida, hoje com 24 anos, testemunhou as peripécias nômades da mãe no período pré-PGE, tendo de acompanhá-la várias vezes, por absoluta falta de opção de ambas, em viagens de bate-e-volta para os plantões no sindicato dos petroleiros, em Santos – "regadas a muita mamadeira, fraldas, sucos, livrinhos de história".

Pioneira da família a cursar uma universidade, no início o poder aquisitivo caiu em relação aos tempos em que advogava a remuneração, luta essa 

que continua", lembra Cida. Ela começou na Procuradoria Fiscal, período em que fez muitos amigos e, em meio à agitação do trabalho, teve a segunda filha, Laura, hoje com 16. Na ocasião, ela teve de ter paciência para nascer, já que antes de ir ao hospital a mãe tinha de deixar a banca em ordem e, ainda por cima, levar Rosa ao dentista, "porque depois ia ser difícil".

Depois de uma breve passagem na Consultoria de Recursos Hídricos, hoje Cida desfruta de uma rotina aparentemente "sob controle", com muita adrenalina e nenhum tédio. Quase dez horas de trabalho não atrapalham o hábito de ir direto para casa, reencontrar a família, fazer os balanços do dia, ver tevê, ler, estudar (quando não leva trabalho para casa). Nem as eventuais idas ao cinema, os encontros com as pessoas queridas, o bom vinho das horas vagas. Cida é recém-casada com Wellington, o companheiro de quase três décadas – "pai excelente das meninas e o maior incentivador de minhas realizações e conquistas".

Ela descreve com simplicidade o suor da busca por essas conquistas. Mas por trás dessa simplicidade está sua consciência de que ser mulher é ser protagonista da luta pela igualdade de oportunidades. E que esta faz parte de uma outra, maior, e também dos homens: "Aquela pela igualdade de todos os seres humanos no direito à realização de suas potencialidades, em um mundo justo e acolhedor como só um colo de mulher sabe ser".

No palco do dia, a vida em três atos

Primeiro ato: Seccional Osasco da Procuradoria Geral do Estado, área do Contencioso, onde Fernanda Ribeiro de Mattos Luccas atua desde agosto do ano passado. Fernanda já advogou para grandes escritórios: Petrobrás, Rede Bandeirantes. Mas a Procuradoria Geral do Estado era o objetivo mirado desde os tempos de Direito no Mackenzie, concluído em 1993. "O enfoque da advocacia pública sempre me estimulou a entrar na carreira. Podemos e devemos, através do trabalho, contribuir de alguma maneira, para a construção de uma sociedade mais justa, sem tantas desigualdades." Uma vez na PGE, em 1998, a vitória seguinte seria a transferência de Guarulhos para Osasco, ficando assim muito mais próxima dos dois outros atos em que costuma repartir seu dia.

O segundo ato começa quando chega em casa, e a cena consiste em fiscalizar o banho das crianças, acompanhar suas tarefas escolares, brincar com o bebê, servir o jantar, fazer compras... Os meninos requisitam e reclamam a atenção nesse único momento do dia em que a turma toda consegue se reunir.

Os "meninos" de Fernanda são: Luccas, com quem é casada há 15 anos e a quem atribui parceria em todas as suas conquistas; e os filhos Matheus, 13, Daniel, 9, e Thiago, 2 anos. "É muito interessante ter filhos em idades tão diferentes, nos proporciona constante renovação e aprendizado."

Com o tempo escasso, o piano foi sendo deixado de lado. Nos poucos momentos livres, Fernanda recorre à hidroginástica e caminhadas para dar uma arejada e recuperar o fôlego. As cortinas do dia só se fecham depois de um mergulho nos estudos. Ela faz mestrado em Direito Urbanístico na PUC-SP e precisa dedicar "algumas horas do dia" à leitura e à produção da dissertação.

A rotina trabalho-casa-meninos-estudo foi uma opção absolutamente consciente. Para Fernanda, tudo se completa. Existem dificul- dades nessa tripla jorna- da, mas definitivamente não são intransponíveis. Ao contrário, dão um valoroso sabor de conquista – mulher, mãe, companheira, namorada, amiga, profissional, dona de casa, intelectual, batalhadora, entre inúmeras outras possibilidades – é tudo o que deseja ser.

Simplesmente ser feliz

Regina Gaducci é experiente. Joga vôlei pela categoria master da cidade de São Sebastião. Em 2003, foi vice-campeã paulista pelo nível C e, em 2004, campeã pelo nível B. Agora em março, – "se o chefe deixar" – Regina disputa pela Ilhabela o campeonato brasileiro de vôlei máster, em Saquarema (RJ). Em julho, os Jogos Regionais e, em outubro, o campeonato em Curitiba.

Não. Não houve nenhum erro da edição nem de impressão que trouxe um trecho de algum caderno de esportes para O Procurador por engano. É que Regina, diferentemente das outras colegas aqui perfiladas, é uma procuradora que, digamos, leva a vida na esportiva.

Atuando no Contencioso, em Ilhabela, solteira e sem filhos, Regina divide seu dia entre as inúmeras atividades típicas de uma seccional da PGE – que além das de procurador incluem expedir ofícios, arquivar papéis, preencher Gares, ir ao banco, fazer levantamento judicial, ir ao correio – e seu esporte predileto. Além disso, estuda Inglês há quatro anos. Às sete da manhã Regina já está cuidando de seus três cachorros e baixando as publicações do Diário Oficial pela internet. 

Como mora em Ilhabela, mas trabalha em São Sebastião – onde funciona a seccional em espaço cedido pela Prefeitura –, todos os dias apanha a balsa de 8h30 e às 9h já está no batente. "Cidade pequena é diferente. Você acaba conhecendo de perto o rosto por trás da pessoa jurídica que está processando para que pague o imposto devido."

A Defensoria Pública também sempre foi o sonho de Regina. "Dada a ausência dessa carreira organizada no Estado de São Paulo optei pela PGE para que pudesse integrar a PAJ." Prestou concurso em 1992 e começou a trabalhar em 93, no Júri, onde permaneceu por seis anos. Sensibilidade à flor da pele, Regina descreve sua experiência: "os familiares buscavam consolo, compreensão e apoio, pois já tinham um número excessivo de pessoas que taxavam seus filhos e maridos de bandidos e assassinos. Era triste informar a algumas mães que seus filhos já possuíam antecedentes que elas desconheciam".

Um trabalho gratificante, de valor, mas com um alto preço. "Fui ficando impregnada pela situação recorrente de miséria aliada a criminalidade. Você vai se sensibilizando ao invés de endurecer." Isso, aliado à situação de violência e péssima qualidade de vida em São Paulo pesaram e quando abriu uma vaga na regional de Taubaté, ela partiu.

Quando encerra suas atividades na Procuradoria, às 19h, Regina veste seu uniforme e parte para o treino de vôlei, sempre focada no seu principal objetivo como mulher: encarar o mundo e os desafios com os olhos da feminilidade, sem com isso esquecer a firmeza e determinação necessárias a um bom desempenho na vida pessoal e profissional. Ou, simplesmente, ser feliz.

Ser mulher é... muito bom

Tardou mas não falhou. Depois de quase dois anos de espera, Juliana Garcia Belloque conquistou enfim a estréia na PGE, em setembro do ano passado, no 1º Tribunal do Júri. Juliana faz parte do grupo de novos procuradores que travaram uma persistente batalha pela nomeação.

Mesmo recém-empossada, já se sente totalmente envolvida pela função, e apaixonada. No Tribunal do Júri da Capital, os novos procuradores encontraram um ambiente marcado, de um lado, pela competência e comprometimento dos colegas mais antigos, verdadeiramente vocacionados para a tarefa, e, de outro, pelo companheirismo desfrutado desde o início.

Apesar das dificuldades enfrentadas, Juliana diz que só deixaria a Procuradoria do Estado pela Defensoria Pública paulista. "E espero poder fazer isso em breve." Foi pensando em ser defensora pública que batalhou para ingressar na PGE. "Acho que há várias formas de utilizar o direito como instrumento de promoção de mudanças sociais, prestar assistência jurídica e judiciária à população carente foi a maneira que escolhi de ajudar um pouco para o alcance deste objetivo maior".

Foi também esse ideal que levou Juliana a tornar-se membro do Comitê Latino Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem) – no qual atuam outras duas procuradoras, Flávia Piovesan e Mônica de Melo. Trata-se de uma rede de organizações empenhadas em unir esforços para uma efetiva defesa dos direitos das mulheres na região. São desenvolvidos trabalhos buscando mudanças sociais, culturais e jurídicas para a promoção da igualdade.

Por exemplo, a mudança do Código Penal brasileiro para a exclusão de conteúdos discriminatórios – prometida pelo governo por ocasião do Dia Internacional da Mulher –, é uma luta antiga do comitê. "Tenho aprendido muito com as mulheres da Cladem e de outras redes que fazem história em nosso país."

Juliana ainda encontra tempo para o curso de doutorado em Direito Processual Penal na USP. E de todos os prazeres que vão e voltam ao sabor da instabilidade da agenda e do cotidiano, o único do qual não abre mão é a convivência com os amigos, que foi muito enriquecida com os novos colegas da Procuradoria. Para Juliana definir o que é ser mulher é difícil. "Mas ser o que sou tem sido muito bom."

 

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