ASSOCIAÇÃO DOS PROCURADORES DO ESTADO DE SÃO PAULO


 
Entrevista _______________________________________________

A difícil construção da democracia

A procuradora Flávia D’Urso esteve em missão oficial no Timor Leste 
e fala da importância de construir um sistema judiciário que 
respeite as tradições do país

H á dois anos surgiu a primeira oportunidade, mas questões burocráticas emperraram a viagem. Dessa vez, no entanto, após o convite da Subprocuradoria Geral da área da Assistência Judiciária do Estado, em pouco mais de dez dias a procuradora Flávia D’Urso embarcava para o Timor Leste em missão oficial da Organização das Nações Unidas (ONU). Flávia levou para o Timor o conhecimento brasileiro sobre a construção de um sistema judiciário democrático, especificamente sobre a importância da Defensoria Pública do Estado. Ironia: Flávia D’Urso atua desde 1989 na PAJ Criminal, num estado que não tem sua própria Defensoria.

Durante uma semana, Flávia participou, no Timor, de uma série de reuniões com o objetivo de traçar um panorama do recente sistema judiciário do país (leia mais sobre o Timor, no box) e das contribuições que o Brasil pode dar para o estabelecimento das instituições democráticas. "Foi fantástico!", tanto que Flávia quer voltar e permanecer no Timor por um período mais longo. "Estou fascinada, quero trabalhar lá e ver o resultado da construção dessas novas instituições." Com exclusividade para O Procurador, Flávia D’Urso conta um pouco de sua viagem e das impressões sobre a peculiar organização judiciária do Timor. 

O Procurador – Como se deu sua escolha para ir ao Timor Leste?

Flávia D’Urso – O ministro Flávio Bierrenbach, do Supremo Tribunal Militar, foi algumas vezes para lá e oficiou várias carreiras do Estado para que informassem sobre pessoas que estivessem interessadas em participar de missão pela ONU. Naquela ocasião manifestei minha vontade, mas não foi possível. Passado mais de um ano, um novo convite e, dessa vez, deu certo. 

O Procurador – Em que consiste essa missão?

Flávia D’Urso – O Timor foi o último país a aderir à Comissão de Países de Língua Portuguesa. Essa é uma estratégia política internacional de aproximação desses países, por intermédio da cooperação técnica. Quem está à frente é a Agência Brasileira de Cooperação, um órgão do Itamarati. Nossa missão era composta pelo ministro Flávio Bierrenbach, pelo promotor de Justiça de São Paulo Antonio Carlos Nunes, pelo defensor público do Rio de Janeiro Osvaldo Deleuzes, por Marina da Silva, subdefensora-geral da União, pelo assessor técnico do STJ Humberto Lustosa, pelos diplomatas Carlos Puente e Luiz Ortigão, além de Daniel Furst, funcionário da Agência, que é quem vai fazer o projeto técnico, a partir dos nossos relatórios. A excelente integração entre essas pessoas colaborou muito para o sucesso do projeto.

O Procurador – Como foi seu trabalho no Timor?

Flávia D’Urso – Nossa missão era de prospecção para cooperação com o sistema de Justiça deles, fomos amealhar dados. Fizemos reuniões com o Ministério da Justiça, com a Procuradoria Geral de Justiça, com a Defensoria Pública, com o presidente do Tribunal de Recursos e com representantes do PNUD/ONU (Plano Nacional das Nações Unidas para o Desenvolvimento).

O Procurador –
O Timor já tem uma Defensoria Pública constituída?

Flávia D’Urso – Sim, mas a Defensoria lá não tem o trato constitucional que tem o Ministério Público e a Magistratura. É um anexo do Ministério da Justiça e não é tratada como carreira de Estado. O modelo constitucional do Timor segue a Constituição Portuguesa. Os profissionais que atuam na Defensoria são de organizações não governamentais. Há três mentores: um advogado do Cabo Verde, e dois de São Paulo – um remunerado pelo PNUD, da ONU, e outro pela organização americana Ifes-Usaid. 

O Procurador – E quais foram as observações a respeito desse formato?

Flávia D’Urso – Posicionamo-nos de que seria ideal que a Defensoria fosse carreira de Estado. Entretanto, essa visão enfrenta questões culturais próprias do Timor Leste. Os timorenses são organizados em comunidades chamadas Sucos, que têm líderes que resolvem todos os conflitos de acordo com as regras sociais deles. E isso foi muito importante para o processo de independência do Timor, precisa ser levado em conta. Não há muitas demandas judiciais, os líderes comunitários resolvem muita coisa. Essa é uma acomodação democrática que precisa ser cuidadosamente feita pelo Estado. A Defensoria também atende quem pode pagar, o que, ao nosso ver, não está certo. 

O Procurador – E a questão da língua, é um problema?

Flávia D’Urso – O governo quer consolidar a língua portuguesa, mas só os mais velhos sabem falar. A maior parte da população fala indonésio ou tetum (um idioma local). A confusão está no fato de que são considerados idiomas oficiais o tetum e o português, mas os documentos oficiais ainda são escritos em indonésio. 

O Procurador – Quais suas impressões sobre o Timor?

Flávia D’Urso – A precariedade e a pobreza já eram esperadas. O Timor tem o índice de desenvolvimento humano (IDH) mais baixo da Ásia. Não há saneamento básico e a população sofre com doenças como malária, cólera, encefalite e febre amarela. Além do altíssimo índice de analfabetismo e de mortalidade infantil.

Mas em missão diplomática, ficamos hospedados num hotel-navio e nossas refeições eram feitas em restaurante de comida internacional. 

O Procurador – Este trabalho vai continuar?

Flávia D’Urso – O acordo prevê a ida de brasileiros até a completa estruturação do sistema judiciário. Também está previsto o intercâmbio com timorenses, para que eles vejam como as coisas funcionam aqui, instituições, faculdades. 

O Procurador – E como foi falar de Defensoria Pública sem ser uma defensora pública?

Flávia D’Urso – Não houve um tratamento diferenciado. O convite foi um reconhecimento ao trabalho realizado pelos procuradores da PAJ em nosso estado. Mas, as pessoas me perguntavam: São Paulo vai ou não vai criar a Defensoria Pública? E eu fazia questão de dizer que essa é a nossa luta. 


Ditadura sangrenta

O Timor Leste fica no arquipélago indonésio e foi colônia de Portugal até 1975. Durante dez curtos dias, em dezembro daquele ano, a Frente Revolucionária do Timor Leste Independente (Fretilin) proclama a independência do país. Mas a Indonésia invade a ilha transformando-a em sua 27ª província. Foram décadas sangrentas: a Fretilin se refugiou nas montanhas para combater os invasores e os conflitos resultaram em mais de 200 mil mortes.

Além da repressão militar, o governo indonésio forçou a adoção de sua língua e a islamização dos timorenses (em sua maioria católicos). Isso só aumentou a simpatia pelos revolucionários – dentre eles, Xanana Gusmão, atual presidente do Timor. Num plebiscito, em 1999, os habitantes da ilha referendaram a opção pela independência que só veio em maio de 2002.

A população, que vive eminentemente da agricultura, sofre com a pobreza. Países de todo o mundo têm organizado missões comunitárias de cooperação com o Timor. O Brasil é um deles. Nações mais poderosas, como a Austrália, o Japão e os EUA, têm também outro interesse: a exploração do petróleo.

 

 

E

[1] [2] [3] [4/5/6] [7] [8]

F